O Choque da Vitória

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Um Ensaio por David Graeber — e uma Breve Eulogia a Ele

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No dia de hoje, lamentamos o falecimento de nosso amigo e camarada David Graeber, um pensador incansável, perspicaz e abrangente. Em sua homenagem, apresentamos seu ensaio, “O Choque da Vitória”, que ele compôs para a quinta edição de nossa revista, Rolling Thunder, explorando como anarquistas podem estabelecer metas de longo prazo para não seremos surpreendidas por nossas vitórias .


O falecimento inesperado de David nos pega de surpresa. Há poucos dias, estávamos nos correspondendo com ele sobre a decisão do Facebook de banir as páginas anarquistas para aplacar o governo Trump. David foi um dos primeiros a responder com uma declaração de apoio, alegando que “Nada poderia ser mais violento do que nos dizer – e dizer aos nossos jovens, em particular – que estamos proibidos de até mesmo sonhar com um mundo pacífico e cuidadoso”.

Isso era característico do David. Ele não era apenas um intelectual – estava sempre ansioso para tomar uma posição, colocando-se no meio das coisas. Participou da Rede de Ação Direta na cidade de Nova York, liderando as manifestações massivas contra a Área de Livre Comércio das Américas na cidade de Quebec em abril de 2001, no auge do chamado movimento “antiglobalização”. Foi um participante fundamental na fundação do Occupy Wall Street e se envolveu nos debates sobre a “violência” que se seguiram, confrontando os mesmos eruditos arrogantes que outros anarquistas também confrontaram. Ele foi um dos primeiros a chamar a atenção internacional para a experiência revolucionária em Rojava, quando ela foi ameaçada pelo Estado Islâmico e se juntou a nós há um ano no chamado por solidariedade quando a Turquia invadiu a Síria.

Ele colocou seu corpo em risco junto com sua reputação, enfrentando gás lacrimogêneo, bem como retaliação acadêmica. Depois que Yale o forçou a sair por suas convicções políticas, David foi obrigado a se mudar para o exterior para encontrar um cargo universitário compatível com suas habilidades. Ele conseguiu um acordo de publicação corporativa, sim, mas ele conseguiu recusando-se a se ajustar, não diluindo sua política.

David escreveu – e pensou, disse e fez – mais do que poderíamos resumir aqui. Esperamos que outros componham um elogio adequado a ele, contando todas as suas atividades e contribuições em uma ampla gama de áreas. Mesmo quando discordamos – nossa análise da democracia é em parte uma resposta ao relato de David sobre a democracia em ensaios como “There Never Was a West” – sempre aprendemos com ele. Ele era um amigo forte e um adversário digno.

Na obra mais transcendente de Graeber, como o ensaio “What’s the Point If We Can’t Have Fun?” (“Qual é o ponto se não podemos nos divertir?”), ele luta com as questões ontológicas básicas sobre a liberdade e o cosmos. É assim que o lembramos, tecendo diferentes fios para apresentar uma visão de autodeterminação que se estende das partículas subatômicas a sociedades e ecossistemas inteiros:

“É significativo dizer que um elétron ‘escolhe’ saltar da maneira que o faz? Claro que não há como provar. A única evidência que poderíamos ter (de que não podemos prever o que ele vai fazer), nós temos. Mas dificilmente é decisivo. Ainda assim, se alguém deseja uma explicação consistentemente materialista do mundo – isto é, se alguém não deseja tratar a mente como uma entidade sobrenatural imposta ao mundo material, mas simplesmente como uma organização mais complexa de processos que já estão acontecendo, em todos os níveis da realidade material – então faz sentido que algo com ao menos um pouco de intencionalidade, ao menos um pouco de experiência, algo com ao menos um pouco como liberdade, teria que existir em todos os níveis da realidade física também”.

Graeber faleceu aos 59 anos. Nossos corações estão com todos que ele deixou. Lamentamos sua morte e lamentamos todas as coisas que David ainda tinha para compartilhar conosco.


David Graeber, descanse em paz.

O ensaio que compartilhamos aqui surgiu de uma discussão sobre o legado das lutas anticapitalistas na virada do século, durante os protestos contra a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e propostas de iniciativas de “livre” comércio como a Área de Livre Comércio das Américas. Anarquistas e outros manifestantes anticapitalistas desempenharam um papel importante na deslegitimação da OMC (Organização Mudial do Comércio) e do Banco Mundial e até conseguiram bloquear a aprovação do acordo da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) – mas depois disso, muitos dos participantes do movimento ficaram abatidos, consternados por não termos havido abolindo inteiramente o capitalismo.

Após essa discussão, convidamos David a expandir suas idéias em um ensaio para Rolling Thunder, e o resultado foi o seguinte ensaio, “O Choque da Vitória”.

No mínimo, o argumento de David de que anarquistas muitas vezes não estão preparadas para nossas vitórias é mais oportuno hoje do que quando apareceu no início de 2008. Nos últimos anos, anarquistas e outros proponentes da abolição da polícia, das prisões e dos existentes sistema de justiça criminal conseguiram popularizar a noção de que todas essas são instituições injustas sem legitimidade para governar nossas vidas. Sem surpresa, os autoritários e a polícia atacaram com tremenda violência. Presos em uma guerra de atrito envolvendo confrontos noturnos, é fácil para os manifestantes sentir que estamos perdendo – quando em um nível histórico, já alcançamos alguns objetivos que pareciam impensáveis apenas alguns anos atrás. A questão - em 2008 como hoje – é como podemos traçar estratégias em um período de tempo longo o suficiente para aproveitar ao máximo nossas vitórias, em vez de desmoronar em desespero diante dos golpes desesperados da reação.

Pedimos a todos que leiam o trabalho de David e tome qualquer um dos projetos de David que mais lhe agrade. Ele deve estar conosco em nossos movimentos, falando conosco, continuando a viver nas ações que realizamos e nas visões que compartilhamos.

David como nós o conhecíamos e amávamos.


O Choque da Vitória

O maior problema que se apresenta aos movimentos de ação direta é que não sabemos como lidar com a vitória.

Pode parecer estranho dizer isso, pois muitas pessoas desses movimentos não têm se sentido particularmente vitoriosas nos últimos tempos. A maioria das anarquistas sente que o movimento pela justiça global foi uma espécie de lampejo: inspirador, sem dúvida, enquanto durou, mas não conseguiu derrubar duradouras raízes organizacionais nem transformar os contornos do poder no mundo. O movimento contra a guerra foi ainda mais frustrante, pois anarquistas e suas táticas foram marginalizados. A guerra irá terminar, é claro, mas apenas porque guerras sempre terminam. Ninguém sente que contribuiu muito para isso.

Quero sugerir uma interpretação alternativa. Vou esboçar aqui três proposições iniciais:

1. Por mais estranho que pareça, as classes dominantes vivem com medo de nós. Parecem ainda se assustar com a possibilidade de que, se o cidadão médio souber o que pretendem, todos eles acabem pendurados em árvores. Parece implausível, mas é difícil pensar em outra explicação para a maneira como eles entram em pânico quando surge o menor sinal de mobilização em massa, especialmente de ação direta em massa, e em geral tentam desviar a atenção iniciando algum tipo de guerra.

2. De certa forma, esse pânico é justificado. A ação direta em massa — em especial quando organizada em linhas democráticas* — é incrivelmente eficaz. Nos últimos trinta anos, nos Estados Unidos, houve apenas dois exemplos de ação em massa desse tipo: o movimento nuclear no fim dos anos 70 e o chamado movimento “antiglobalização”, aproximadamente de 1999 a 2001. Nos dois casos, os principais objetivos políticos foram atingidos muito mais rápido do que quase todo mundo imaginava ser possível.

3. O verdadeiro problema que esses movimentos enfrentam é que sempre são surpreendidos pela velocidade de seu sucesso inicial. Nunca estamos preparadas para a vitória. Ficamos confusas. Começamos a lutar umas contra as outras. O aumento da repressão e dos apelos ao nacionalismo que inevitavelmente acompanham uma nova rodada de mobilização de guerra então cai como uma luva para autoritários de todos os lados do espectro político. Como resultado, quando todo o impacto de nossa vitória inicial se torna claro, geralmente estamos ocupadas demais sentindo-nos fracassadas para sequer notá-lo.

Manifestante joga uma bomba de gás lacrimogêneo de volta para a polícia durante os protestos contra a Área de Livre Comércio das Américas na cidade de Quebec, dias 20 e 21 de abril de 2001, durante o auge do movimento denominado “antiglobalização”.

Vou analisar os dois exemplos mais proeminentes caso a caso:

I: O Movimento Antinuclear

O movimento antinuclear do fim dos anos 70 marcou a primeira aparição, na América do Norte, do que hoje consideramos táticas e formas de organização padrão do anarquismo: ações em massa, grupos de afinidade, conselhos de porta-vozes, processo de consenso, solidariedade carcerária, o próprio princípio de democracia direta descentralizada… Era tudo um tanto primitivo, em comparação com o que temos agora, e havia diferenças significativas — como uma concepção muito mais estrita, de estilo gandhista, de não-violência —, mas todos os elementos estavam presentes e foi a primeira vez que vieram juntos no mesmo pacote. Durante dois anos, o movimento cresceu e deu todos os sinais de se tornar um fenômeno de proporção nacional. Depois, quase tão rápido quanto se desenvolveu, desintegrou-se.

Tudo começou quando, em 1974, alguns pacifistas que haviam se tornado agricultores orgânicos na Nova Inglaterra conseguiram bloquear a construção de uma usina nuclear proposta em Massachusetts. Em 1976, uniram-se a outros ativistas da região, inspirados pelo sucesso da ocupação de um ano de uma usina na Alemanha, para criar a Clamshell Alliance. Embora a aliança nunca tenha feito uma ocupação, conseguiram colocar a própria ideia da energia nuclear em questão de forma nunca antes vista. Coalizões semelhantes começaram a brotar por toda parte.

As três primeiras ações em massa da Clamshell, em 1976 e 1977, foram bem­-sucedidas. Porém, a aliança logo entrou em crise por questões relativas ao processo democrático. Em maio de 1978, um recém­-criado Comitê Coordenador violou o processo para aceitar uma oferta de última hora do governo de uma manifestação legal de três dias em Seabrook no lugar de uma quarta ocupação planejada (a desculpa foi a relutância em desagradar à comunidade local). Tiveram início azedos debates sobre consenso e relações comunitárias, que se estenderam para o papel da não-violência (mesmo atravessar cercas, ou medidas defensivas como máscaras de gás, haviam sido originalmente proibidas), à discriminação de gênero e assim por diante. Em 1979, a aliança já estava em pedaços. A Abalone Alliance durou mais, até 1985, em parte devido a seu forte núcleo de anarco­feministas.

Visto de fora, não parece muito inspirador. Porém, o que o movimento estava realmente tentando alcançar? Pode ser útil aqui mapear toda a sua gama de objetivos:

1. Objetivos de curto prazo: bloquear a construção da usina nuclear em questão (Seabrook, Diablo Canyon…).

2. Objetivos de médio prazo: bloquear a construção de toda nova usina nuclear, deslegitimar a própria ideia de energia nuclear e começar a caminhar rumo à conservação e à energia verde e legitimar novas formas de resistência não-violenta e democracia direta de inspiração feminista.

3. Objetivos de longo prazo: (pelo menos para os elementos mais radicais) esmagar o Estado e destruir o capitalismo.

Assim sendo, os resultados são claros. Os objetivos de curto prazo quase nunca foram atingidos. Apesar de numerosas vitórias táticas (atrasos, falências de empresas de serviços, ordens judiciais), as usinas que se tornaram o foco da ação em massa acabaram entrando em atividade. Os governos simplesmente não podem se permitir perder uma batalha dessas. Os objetivos de longo prazo também não foram alcançados. Contudo,* uma razão para isso foi *que os de médio prazo o foram de maneira quase imediata. As ações de fato deslegitimaram a própria ideia da energia nuclear — elevando a consciência pública ao ponto de o derretimento da usina de Three Mile Island, em 1979, ter condenado a indústria para sempre. Houve de fato um direcionamento maior à conservação, à energia verde, e uma legitimação de novas técnicas democráticas de organização. Tudo isso aconteceu muito mais rápido do que qualquer pessoa havia imaginado.

Em retrospecto, é fácil observar que a maioria dos problemas subse­quentes foi produto direto da própria velocidade do sucesso do movi­mento. Os radicais esperavam estabelecer elos entre a indústria nuclear e a própria natureza do sistema capitalista que a criou. Como visto, o primeiro se mostrou mais do que disposto a atirar a se­gunda ao mar no momento em que ela se tornou uma responsabilidade. As­sim que empresas de serviços gigantes começaram a alegar que também queriam promover a energia verde, efetivamente dando ao que hoje cha­mamos de ONGs um lugar à mesa, houve uma enorme tentação de abando­nar o barco. Em especial porque muitas só se aliaram a grupos mais radicais para ganharem elas mesmas um lugar à mesa, para início de conversa.

O resultado inevitável foi uma série de acalorados debates estratégicos no movimento. Contudo, é impossível entender isso sem primeiro entender que debates estratégicos, dentro de movimentos diretamente democráticos, raras vezes são conduzidos como tais. Quase sempre assumem a forma de debates sobre outro assunto. A questão do capitalismo, por exemplo. Os anticapitalistas costumam ter prazer em discutir sua posição sobre o assunto. Os liberais, por outro lado, não gostam de ter de dizer “na verdade, sou a favor da manutenção do capitalismo”, por isso, sempre que possível, tentam mudar de assunto. Portanto, debates que na realidade são sobre desafiar ou não diretamente o capitalismo acabam ocorrendo como se fossem discussões de curto prazo acerca de táticas e não-violência. Socialistas autoritários ou outros que suspeitam da democracia em si também não gostam de fazer disso uma questão e preferem discutir a necessidade de criar as coalizões mais amplas possíveis. Aquelas pessoas que apreciam a democracia mas sentem que um grupo está tomando a direção estratégica errada com frequência acham muito mais eficaz desafiar seu processo de tomada de decisão do que as decisões em si.

Manifestantes lidando com os efeitos do gás lacrimogêneo durante manifestações contra a Área de Livre Comércio das Américas na cidade de Quebec, 2001.

Existe outro fator ainda menos lembrado, mas que julgo ter igual importância. Todo mundo sabe que ante uma coalizão ampla e potencialmente revolucionária, a primeira atitude de qualquer governo é tentar rachá-la. Fazer concessões para aplacar os moderados e ao mesmo tempo criminalizar ativistas radicais — é o beabá da arte de governar. O governo americano, no entanto, está de posse de um império global em constante mobilização para a guerra, o que lhe dá outra opção que a maioria dos governos não tem. Aqueles que o controlam podem, praticamente a qualquer momento em que desejarem, decidir elevar o nível de violência no exterior. Esta se mostrou uma forma notavelmente eficaz de desarmar movimentos sociais baseados em preocupações domésticas. Não parece coincidência o movimento pelos direitos civis ter sido seguido por grandes concessões políticas e uma rápida escalada da guerra no Vietnã; o movimento nuclear ter sido sucedido pelo abandono da energia nuclear e um acirramento da Guerra Fria, com os programas Guerra nas Estrelas e guerras por procuração no Afeganistão e na América Central; o Movimento pela Justiça Global ter antecedido o colapso do Consenso de Washington e a Guerra ao Terror. Como resultado, a SDS original teve de deixar de lado sua ênfase inicial na democracia participativa para se tornar um simples movimento antiguerra; o movimento antinuclear metamorfoseou-se em movimento de congelamento nuclear; as estruturas horizontais da DAN e da AGP deram espaço a organizações de massa verticalizadas como a ANSWER e a UFPJ.

Do ponto de vista do governo, a solução militar tem seus riscos. Tudo pode explodir na cara de alguém, como aconteceu no Vietnã (daí a obsessão, pelo menos desde a primeira Guerra do Golfo, em projetar um conflito efetivamente à prova de protestos). Também há sempre o pequeno risco de algum erro de cálculo desencadear por acidente um apocalipse nuclear e destruir o planeta. Mas esses são riscos que os políticos confrontados com a agitação civil parecem normalmente ter estado mais dispostos a assumir — quisera que porque movimentos diretamente democráticos lhes causam autêntico pavor, enquanto movimentos antiguerra são seu adversário preferido. Estados são, afinal, acima de tudo formas de violência. Para eles, mudar o foco da discussão para a violência é trazer as coisas de volta para seu terreno, aquilo sobre o que eles realmente preferem falar. Organizações projetadas seja para travar, seja para se opor a guerras sempre tenderão a ser hierarquicamente mais estruturadas que aquelas projetadas com quase qualquer outra coisa em mente. Decerto foi o que ocorreu no caso do movimento antinuclear.

Embora as mobilizações antiguerra dos anos 80 tenham reunido números muito maiores do que a Clamshell ou a Abalone jamais contaram, também marcaram um retorno a marchas com cartazes, manifestações autorizadas e abandono de experimentos com novas formas de democracia direta.

Police behind a barrier during the demonstrations against the Free Trade Area of the Americas ministerial in Quebec City, 2001.

II: O Movimento Por Justiça Global

Presumirei que nosso gentil leitor esteja amplamente familiarizado às ações em Seattle, aos bloqueios do FMI e do Banco Mundial no A16 em Washington seis meses depois e assim por diante.

Nos EUA, o movimento irrompeu de forma tão rápida e dramática que nem a mídia foi capaz de ignorá-­lo completamente. Também come­çou logo a devorar a si mesmo. Redes de Ação Direta (DAN’s) foram fun­dadas em quase toda grande cidade norte-americana. Ao passo que al­gumas (em especial as de Seattle e Los Angeles) eram reformistas, anti­corporativistas e adeptas de estritos códigos de não violência, a maioria (como as de Nova York e Chicago) era esmagadoramente anarquista e anticapitalista e se dedicava à diversidade de táticas. Outras cidades (Montreal, Washington) criaram Convergências Anticapitalistas ainda mais explicitamente anarquistas. As DAN’s anticorporativistas dissolve­ram­-se quase de imediato, mas muito poucas duraram mais do que al­guns anos. Houve intermináveis e intensos debates: sobre não violência, sobre manifestações em reuniões de cúpula, sobre questões relativas a racismo e privilégios, sobre a viabilidade do modelo de rede.

Então veio o 11 de Setembro, seguido de um enorme crescimento do nível de repressão e resultante paranoia e a fuga desesperada de quase todos nossos antigos aliados entre sindicatos e ONGs. Já em Miami, em 2003, parecia que havíamos sido jogados à lona, e o movimento foi dominado por uma paralisia da qual apenas recentemente começamos a nos recu­perar.

O 11 de Setembro foi um evento tão estranho, uma catástrofe tão grande, que torna quase impossível percebermos qualquer outra coisa ao redor. Como consequência imediata, quase todas as estruturas criadas no movimento de globalização ruíram. Porém, uma razão pela qual isso foi tão fácil foi não apenas que a guerra parecia uma preocupação muito mais premente, mas também que, mais uma vez, na maioria de nossos objetivos imediatos, já tínhamos, inesperadamente, vencido.

Black bloc marchando para a luta em 21 de abril de 2001, durante confrontos fora das manifestações contra a Área de Livre Comércio das Américas ministerial na cidade de Quebec.

De minha parte, comecei a participar da DAN de Nova York bem na época do A16. A DAN como um todo via a si mesma então como um grupo com dois objetivos principais. Um era ajudar a coordenar a ala norte-americana de um vasto movimento global contra o neoliberalismo, e o que então era chamado de Consenso de Washington, a acabar com a hegemonia das ideias neoliberais, deter todos os grandes acordos comerciais (a Organização Mundial do Comércio, a ALCA) e desacreditar e, por fim, destruir organizações como o FMI. O outro era disseminar um modelo (de considerável inspiração anarquista) de democracia direta: descentralizado, estruturado em grupos de afinidade e processo de consenso, para substituir estilos de organização ativistas antiquados, com seus comitês de gestão e suas altercações ideológicas. Na época, às vezes o chamávamos de “contaminacionismo”, a ideia de que tudo de que as pessoas realmente precisavam era ser expostas à experiência da ação e da democracia direta, e assim iriam querer começar a imitá-las por conta própria. Havia um sentimento geral de que não estávamos tentando construir uma estrutura permanente; a DAN era apenas um meio pa­ra aquele fim. Quando tivesse alcançado esse propósito, diversos membros fundadores me explicaram, ela deixaria de ser necessária. Por outro lado, eram objetivos bastante ambiciosos, por isso também presu­mimos que mesmo que os atingíssemos, levaria pelo menos uma década.

No fim, levou cerca de um ano e meio.

É óbvio que não conseguimos alavancar uma revolução social. No entanto, uma razão pela qual nunca chegamos ao ponto de inspirar cen­tenas de milhares de pessoas a se levantar foi, mais uma vez, o fato de termos atingido nossos outros objetivos de maneira tão rápida. Vejamos a questão da organização. Embora as coalizões antiguerra ainda operem, como coalizões antiguerra sempre fazem, como grupos de fren­te popular verticalizados, quase todos os grupos radicais de pequeno porte não dominados por uma ou outra sorte de sectários marxistas — e isto inclui qualquer um, desde organizações de imigrantes sírios em Montreal a jardins comunitários em Detroit — hoje operam segundo princípios eminentemente anarquistas. Eles podem não saber. Mas o “contaminacionismo” funcionou. Alternativamente, tememos o domínio das ideias. O Consenso de Washington jaz em ruínas. Tanto que é difícil até mesmo lembrar como era o discurso público neste país antes de Seattle.

Raramente a mídia e as classes políticas foram tão unânimes acerca de alguma coisa. A ideia de que um capitalismo supe­r energizado e irrestrito, com “livre comércio” e “mercados livres”, era a única direção possível para a História humana, a única solução possível para qualquer problema, era assumida de forma tão integral que qual­quer um que lançasse dúvida sobre essa proposição era tratado como li­teralmente insano. Ativistas da justiça global, quando primeiro forçaram a atenção da CNN ou da Newsweek, foram de imediato subestimados como lunáticos reacionários. Um ano ou dois mais tarde, ambas estavam dizendo que havíamos ganhado a discussão.

Anarquistas e outras manifestantes derrubam a cerca ao redor da Área de Livre Comércio das Américas ministerial na cidade de Quebec em 20 de abril de 2001.

Em geral, quando faço essa observação diante de um público anarquista, alguém imediatamente rebate: “Sim, claro, a retórica mudou, mas as políticas continuam as mesmas.” Isso é verdade de certa maneira. Isto é, é verdade que não destruímos o capitalismo. Entretanto, pode-se dizer que nós (entenda-se como “nós” aqui a ala horizontalista e voltada para a ação direta do movimento planetário contra o neoliberalismo) lhe desferimos um golpe maior em apenas dois anos do que qualquer um desde, digamos, a Revolução Russa. Permitam-me analisar ponto a ponto:

  • Acordos de Livre Comércio. Todos os ambiciosos tratados de livre-­comércio planejados desde 1998 fracassaram. O AMI (Acordo Multilateral de Investimentos) foi desbancado; a ALCA, foco das ações em Quebec e Miami, foi freada. A maioria de nós se lembra da cúpula da ALCA em 2003 principalmente por apresentar o “modelo Miami” de extrema repressão policial mesmo contra a resistên­cia civil nitidamente não violenta. E foi isso. Todavia, nos esquecemos de que foi acima de tudo o ataque furioso de um grupo de péssimos perde­dores — Miami foi o encontro que sacramentou a morte da ALCA. Hoje ninguém ao menos fala em tratados amplos e ambiciosos nessa escala. Os EUA estão relegados a buscar pequenos acordos de comércio binacio­nais com aliados tradicionais como a Coreia do Sul e o Peru, ou na me­lhor das hipóteses acordos como o CAFTA, unindo seus Estados ­clientes remanescentes na América Central, e sequer está claro se dará certo.

  • Organização Mundial do Comércio. Após a catástrofe (para eles) em Seattle, os organizadores levaram o encontro seguinte para a ilha de Doha, no Golfo Pérsico, aparentemente decidindo que prefeririam correr o risco de ser detonados por Osama bin Laden a ter de encarar outro bloqueio da DAN. Durante seis anos insistiram na “rodada de Doha”. O problema foi que, encorajados pelo movimento de protesto, os governos do Hemisfério Sul começaram a insistir em que não iriam mais concor­dar em abrir suas fronteiras para importações agrícolas de países ricos a menos que estes no mínimo parassem de despejar bilhões de dólares em subsídios sobre seus próprios agricultores, impossibilitando os do Sul de competir. Já que os EUA em particular não tinham a menor intenção de fazer qualquer espécie dos sacrifícios que exigiam ao resto do mundo, todos os acordos foram cancelados. Em julho de 2006, Pascal Lamy, ca­beça da OMC, declarou a rodada de Doha encerrada, e agora ninguém sequer fala em outra negociação com a entidade por pelo menos dois anos — quando ela pode muito bem ter deixado de existir.

  • O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Eis a história mais impressionante de todas. O FMI está se aproximando rapida­mente da falência, e isto é resultado direto da mobilização mundial contra ele. Para ser mais direto: nós o destruímos. O Banco Mundial não vai muito melhor. Porém, no momento em que todos os efeitos foram sentidos, sequer estávamos prestando atenção.

Vale a pena contar essa última história em detalhes, por isso permi­tam-­me abandonar os tópicos por um momento e continuar com o texto principal:

O FMI sempre foi o arquivilão da luta. É o instrumento mais pode­roso, mais arrogante, mais impiedoso por meio do qual políticas neoli­berais foram, nos últimos 25 anos, impostas aos países mais pobres do Hemisfério Sul, basicamente pela manipulação da dívida. Em troca do refinanciamento emergencial, o FMI exigia “programas de ajustamento estrutural” que forçavam imensos cortes na saúde e na educação, pisos para os preços de alimentos, além de intermináveis esquemas de privati­zação que permitiam a capitalistas estrangeiros apropriar-­se de recursos locais a preços de queima de estoque. O ajustamento estrutural nunca serviu para reerguer os países economicamente, significou apenas a ma­nutenção da crise, e a solução sempre foi insistir em mais uma rodada de ajustamento estrutural.O FMI teve outro papel, menos celebrado: o de fiscal do mundo. Era seu trabalho garantir que país algum (indepen­dente do nível de pobreza) jamais tivesse direito à moratória em em­préstimos de banqueiros ocidentais (independente do nível de estupidez).

Mesmo que um banqueiro oferecesse a um ditador corrupto um em­préstimo de 1 bilhão de dólares, e esse ditador o depositasse diretamen­te em sua conta na Suíça e deixasse o país, o FMI asseguraria que 1 bilhão de dólares (mais generosos juros) fossem tirados de suas antigas vítimas. Se um país de fato declarasse moratória, por qualquer razão, o FMI podia impor um boicote de crédito cujos efeitos econômicos eram mais ou menos comparáveis aos de uma bomba nuclear (tudo isso vai de encontro mesmo à teoria econômica elementar, segundo a qual aqueles que emprestam dinheiro devem aceitar um certo grau de risco, mas, no mundo da política internacional, as leis econômicas só são utilizadas pa­ra atar as mãos dos pobres.) Esse papel foi sua derrocada.

O que aconteceu foi que a Argentina declarou a moratória e se sa­fou. Nos anos 90, o país fora o melhor aluno do FMI na América Latina— privatizou literalmente todas as instituições públicas exceto a alfân­dega. Então, em 2002, a economia desmoronou. Os resultados imedia­tos, todos conhecemos: batalhas nas ruas, assembleias populares, a queda de três governos em um mês, estradas bloqueadas, fábricas ocu­padas… O “horizontalismo” — princípio amplamente anarquista — esta­va no centro da resistência popular. A classe política via­se em tão completo descrédito que seus membros eram obrigados a usar perucas e bigodes postiços para poderem ir a restaurantes sem sofrer ataques físi­cos. Quando Néstor Kirchner, um social­democrata moderado, assumiu o poder em 2003, sabia que precisava tomar uma atitude drástica para que a maioria da população ao menos aceitasse a ideia de ter um governo, sem falar em um governo dele. E assim fez. Fez, na verdade, aquilo que ninguém em sua posição jamais deveria fazer: declarou a moratória da dívida externa argentina.

O fato é que Kirchner foi bastante perspicaz. Ele não declarou a mo­ratória dos empréstimos do FMI. Declarou a da dívida privada da Argen­tina, anunciando que, para todos os empréstimos pendentes, pagaria apenas 25 centavos por dólar. O Citibank e o Chase, é claro, foram ao FMI, seu costumeiro fiscal, exigir punição. Porém, pela primeira vez em sua história, o Fundo não se mexeu. Em primeiro lugar, com a economia argentina já em ruínas, mesmo o equivalente econômico a uma bomba nuclear faria pouco mais do que chacoalhar os escombros. Em segundo, praticamente todos estavam cientes de que fora seu desastroso conselho que preparara o terreno para o colapso do país, antes de qualquer coisa. Em terceiro e mais decisivo, isso aconteceu no auge do impacto do mo­vimento pela justiça global: o FMI já era a instituição mais odiada do planeta, e destruir voluntariamente o que restava da classe média argen­tina seria ir um pouco longe demais.

Então a Argentina teve permissão para se safar. Depois disso, tudo mudou. Brasil e Argentina juntos conseguiram pagar sua dívida restante ao pró­prio FMI. Com uma pequena ajuda de Chávez, o resto do continente fez o mesmo. Em 2003, a dívida latino-americana com o FMI era de US$ 49 bilhões. Hoje, é de US$ 694 milhões. Pondo em perspectiva: é uma que­da de 98,6%. Para cada mil dólares devidos quatro anos atrás, a América Latina agora deve 14. A Ásia veio em seguida. China e Índia não têm dívida remanescente com o FMI e se recusam a tomar novos emprésti­mos. O boicote agora inclui Coreia, Tailândia, Indonésia, Malásia, Filipi­nas e praticamente todas as outras economias regionais importantes. A Rússia também. O Fundo está relegado ao controle das economias da África e talvez de algumas partes do Oriente Médio e da antiga esfera soviética (basicamente aquelas que não possuem petróleo). Como resul­tado, suas receitas despencaram 80% em quatro anos. Na maior das iro­nias possíveis, cada vez mais parece que o FMI chegará à falência se não encontrar alguém disposto a resgatá-lo. Tampouco está claro se há al­guém particularmente interessado. Com sua reputação de fiscal finan­ceiro em frangalhos, o órgão não tem mais serventia evidente nem para os capitalistas. Houve uma série de propostas em recentes encontros do G8 para criar­lhe uma nova missão — uma espécie de tribunal interna­cional da falência, quem sabe —, mas todas acabaram naufragando por uma ou outra razão. Mesmo que venha a sobreviver, o FMI já foi reduzi­do a uma caricatura do que era antes.

O Banco Mundial, que logo assumiu o papel de bom guarda, está em forma um tanto melhor. No entanto, deve-se enfatizar aqui a expressão “um tanto” — quer dizer, sua receita caiu apenas 60%, não 80%, e há poucos boicotes de verdade. Por outro lado, atualmente o Banco é man­tido vivo em grande parte pelo fato de Índia e China ainda estarem dis­postas a lidar com ele, e as duas partes sabem disso, portanto ele não está mais em grandes condições de ditar regras.

Obviamente, isso tudo não significa que todos os monstros tenham sido aniquilados. Na América Latina, o neoliberalismo pode estar em re­tirada, mas a China e a Índia estavam executando “reformas” devastado­ras dentro de seus próprios territórios; as proteções sociais na Europa estão sob ataque; e a maior parte da África, a despeito de muito exibici­onismo hipócrita da parte dos Bonos e dos países ricos do mundo, ainda está afundada em dívidas, e agora também enfrenta uma nova coloniza­ção pela China. Os EUA, com seu poderio econômico retrocedendo na maior parte do mundo, estão tentando freneticamente redobrar seu domínio sobre o México e a América Central. Não estamos vivendo numa utopia. Mas já sabíamos disso. A questão é por que nunca percebemos nossas vitórias.

Olivier de Marcellus, um ativista suíço da AGP, aponta para uma ra­zão: sempre que algum elemento do sistema capitalista respira, seja a in­dústria nuclear ou o FMI, algum periódico esquerdista começa a nos explicar que, de fato, é tudo parte do plano deles —ou, quem sabe, um efeito do inexorável desenrolar das contradições internas do capital, mas, sem dúvida, nada pelo qual nós mesmos sejamos de forma alguma res­ponsáveis. Mais importante ainda, talvez, seja nossa relutância em sequer pronunciar a palavra “nós”. A moratória argentina, ela não foi realmente engendrada por Néstor Kirchner? O que ele tem a ver com o movimento de globalização? Quer dizer, as mãos dele não foram forçadas por milha­res de cidadãos que estavam se rebelando, depredando bancos e substitu­indo o governo por assembleias populares coordenadas pela CMI. Bem, está certo, talvez tenham sido. Neste caso, aqueles cidadãos eram pessoas de cor do Hemisfério Sul. Como “nós” podemos assumir a responsabilida­de por suas ações? Esqueçam que a maioria deles se via como parte do mesmo movimento pela justiça global que nós, defendia ideias semelhan­tes, vestia roupas semelhantes, utilizava táticas semelhantes, em muitos casos até pertencia às mesmas confederações e organizações. Dizer “nós” aqui sugeriria o pecado original de falar pelos outros.

De minha parte, creio ser razoável um movimento global considerar suas realizações em termos globais. Elas não são não são consideráveis. Porém, assim como ocorreu com o movimento antinuclear, estavam quase todas focadas no meio-termo. Permitam-me mapear uma hierarquia de objetivos semelhante à anterior:

1) Objetivos de Curto Prazo:interromper e encerrar reuniões de cúpula específicas (FMI, OMC, G8 etc.).

2 ) Objetivos de Médio Prazo: destruir o “Consenso de Washington” acerca do neoliberalismo, bloquear todos os novos pactos comerciais, deslegitimar e por fim acabar com instituições como a OMC, o FMI e o Banco Mundial; disseminar novos modelos de democracia direta.

3) Objetivos de Longo Prazo: (pelo menos para os elementos mais radicais) esmagar o Estado e destruir o Capitalismo.

Mais uma vez, encontramos o mesmo padrão. Após o milagre de Seattle, objetivos de curto prazo — táticos — raras vezes foram atingidos. No entanto, isso se deveu principalmente ao fato de que, diante de tal movimento, os governos tendem a bater o pé e tornar uma questão de princípio evitar que eles o sejam. Isto em geral era considerado muito mais importante, na verdade, do que o sucesso da reunião de cúpula em questão. A maioria dos ativistas parece não se dar conta de que em inúmeros casos — as reuniões de 2001 e 2002 do FMI e do Banco Mundial, por exemplo — a polícia acabou reforçando esquemas de segurança tão elaborados que chegou muito perto de ela mesma dar fim às reuniões, fazendo com que muitos eventos fossem cancelados, as cerimônias fossem arruinadas e ninguém tivesse chance de se falar. Mas a questão não era se os comissários chegariam a se reunir ou não. A questão era que os manifestantes não tinham perspectiva de vitória.

Aí, também, os objetivos de médio prazo foram atingidos de forma tão rápida que na verdade os de longo prazo se tornaram mais difíceis. ONGs, sindicatos, marxistas autoritários e aliados similares abandonaram o barco quase imediatamente. Debates estratégicos vieram em seguida, mas foram realizados, como sempre, de maneira indireta, como discussões acerca de raça, privilégios, tática, como quase tudo, exceto como debates estratégicos. Outra vez, tudo se tornou infinitamente mais difícil devido ao recurso do Estado à guerra.

É duro, como mencionei, para os anarquistas assumir muita responsabilidade direta pelo inevitável fim da guerra no Iraque, ou mesmo pelo duro golpe que o império já recebeu lá. No entanto pode-­se muito bem levar em consideração a responsabilidade indireta. Desde os anos 60, e a catástrofe no Vietnã, o governo americano não abandonou sua política de responder a qualquer ameaça de mobilização democrática em massa com um retorno à guerra. Mas isso requer muito mais cuidado. Em es­sência, eles têm de engendrar guerras que sejam à prova de protestos. Existem ótimas razões para crer que a primeira Guerra do Golfo foi explicitamente engendrada com isso em mente. A abordagem utilizada na invasão ao Iraque — a insistência em um exército menor e de alta tec­nologia, o extremo apoio no poder de fogo indiscriminado, mesmo con­tra civis, para se proteger de níveis de baixas americanas semelhantes aos do Vietnã — parece ter sido desenvolvida, novamente, mais com a intenção de evitar qualquer potencial movimento de paz dentro de casa do que com foco na efetividade militar. Isto, de qualquer forma, ajudaria a explicar por que o exército mais poderoso do mundo acabou amarrado e mesmo derrotado por um grupo quase inimaginavelmente heterogêneo de guerrilheiros com acesso insignificante a zonas de segurança, financi­amentos ou apoio militar externos. Como nas cúpulas de comércio, eles estão tão obcecados em fazer com que as forças de resistência civil não tenham perspectiva de vencer a batalha doméstica que prefeririam per­der a verdadeira guerra.

Perspectivas (com um breve retorno à Espanha dos anos 30)

Como, então, lidar com os perigos da vitória? Não posso afirmar ter uma resposta simples. Na realidade escrevi este ensaio mais para iniciar uma conversa, pôr o problema na mesa — inspirar um debate estratégico.

Ainda assim, algumas implicações são bastante nítidas. Na próxima vez em que planejarmos uma grande campanha de ação, creio que faremos bem em, pelo menos, levar em conta a possibilidade de alcançarmos nossos objetivos estratégicos de médio prazo com muita rapidez e de, quando isso acontecer, muitos de nossos aliados debandarem. Temos de reconhecer debates estratégicos pelo que são, mesmo quando parecem ser outra coisa. Tomemos um exemplo famoso: discussões acerca de destruição de propriedades após Seattle. A maioria delas, creio eu, foram, na verdade, discussões acerca do capitalismo. Aqueles que censuraram a quebra de janelas o fizeram principalmente porque desejavam apelar aos consumidores da classe média para que aderissem à modalidade de intercâmbio global do consumismo verde, que se aliassem a burocracias trabalhistas e sociais-democratas no exterior. Não foi uma trilha projetada para criar um confronto direto com o capitalismo, e a maioria daqueles que nos instaram a tomar essa rota estavam no mínimo céticos quanto à possibilidade de um dia o capitalismo ser realmente derrotado.

Aqueles que quebraram janelas não queriam saber se estavam ofendendo os proprietários suburbanos, pois não os viam como um elemento potencial em uma coalizão anticapitalista revolucionária. Estavam tentando, na prática, sequestrar a mídia para enviar a mensagem de que o sistema era vulnerável — na esperança de inspirar atos insurrecionais da parte daqueles que pudessem considerar entrar para uma aliança genuinamente revolucionária: adolescentes alienados, pessoas de cor oprimidas, trabalhadores comuns impacientes com os burocratas sindicalistas, os desabrigados, os criminalizados, os radicalmente descontentes. Se um movimento anticapitalista militante fosse ter início, na América, teria de começar com membros assim: pessoas que não precisam ser convencidas de que o sistema está corroído, apenas de que existe algo que possam fazer. E em todo caso, mesmo que fosse possível haver uma revolução anticapitalista sem conflito armado nas ruas — o que a maioria de nós espera que seja, já que, vamos admitir, se nos levantarmos contra o exército americano, perderemos — não há como fazermos essa revolução e ao mesmo tempo respeitarmos escrupulosamente o direito de propriedade.

Isto nos leva a uma questão interessante. O que significaria conquis­tar não apenas nossos objetivos de médio prazo, mas também os de lon­go prazo? No momento não está muito claro para ninguém como isso poderia acontecer, pela simples razão de que nenhum de nós tem muita fé remanescente “na” revolução, no antigo sentido dado ao termo nos sé­culos XIX e XX. Afinal, a visão total de uma revolução, de que haverá uma única insurreição em massa ou greve geral e então todos os muros ruirão, é inteiramente baseada na velha fantasia de dominar o Estado. Esta seria a única maneira possível de a vitória ser tão absoluta e com­pleta — pelo menos se estivermos falando de um país inteiro ou de um território significativo.

Para ilustrar, consideremos: o que haveria realmente signi­ficado para os anarquistas espanhóis ter “vencido” em 1937? É impressi­onante quão raro nos fazemos perguntas como essa. Apenas imaginamos que teria sido algo como a Revolução Russa, que começou de modo se­melhante, com a dissolução do antigo exército, a criação espontânea de sovietes. Mas isso foi nas grandes cidades. A Revolução foi seguida de anos de guerra civil na qual o Exército Vermelho gradualmente impôs o controle do novo Estado a cada parte do Império Russo, quisessem ou não as comunidades em questão. Imaginemos que as milícias anarquistas na Espanha tivessem derrotado o exército fascista, e então desfeito com­pletamente e expulsado o Governo Republicano socialista de seus gabi­netes em Barcelona e Madri. Decerto teria sido uma vitória aos olhos de qualquer um. Porém, o que teria acontecido em seguida? Haveriam eles transformado a Espanha em uma não república, um anti­estado estabe­lecido exatamente dentro das mesmas fronteiras internacionais? Haveri­am imposto um regime de conselhos populares em cada vila e município no território do que outrora fora a Espanha? Como, exatamente?

Preci­samos ter em mente que em muitas vilas, povoados e até regiões do país os anarquistas eram quase inexistentes. Em alguns, praticamente toda a população era formada por católicos ou monarquistas conservadores; em outros (digamos, no País Basco), havia uma classe trabalhadora militan­te e bem ­organizada, porém esmagadoramente socialista ou comunista. Mesmo no auge do fervor revolucionário, a maioria deles continuaria fiel a seus antigos valores e ideias. Se a FAI vitoriosa tentasse exterminar a todos — uma tarefa que teria exigido matar milhões de pessoas —, ex­pulsá-­los do país, realocá-los à força em comunidades anarquistas ou mandá-­los para campos de reeducação, seria não só culpada de atroci­dades de nível mundial, mas também teria de deixar de ser anarquista.

Temos que ter em mente aqui que havia muitas vilas, cidades e até mesmo regiões inteiras da Espanha onde anarquistas eram quase inexistentes. Em alguns, quase toda a população era composta de católicos conservadores ou monarquistas; em outros (digamos, o País Basco), havia uma classe trabalhadora militante e bem organizada, mas uma classe predominantemente socialista ou comunista. Mesmo no auge do fervor revolucionário, a maioria deles permaneceria fiel a seus antigos valores e ideias. Se a FAI vitoriosa tentasse exterminar todos eles – uma tarefa que exigiria a morte de milhões de pessoas – ou expulsá-los do país, ou realojá-los à força em comunidades anarquistas, ou enviá-los para campos de reeducação – eles não seriam apenas culpados de atrocidades a nível mundial, mas teriam que desistir de ser anarquistas. Organizações democráticas simplesmente não podem cometer atrocida­des nessa escala sistemática: para isso, seria necessária uma entidade verticalizada de inspiração comunista ou fascista, já que não se pode fa­zer com que milhares de seres humanos massacrem de forma sistemática mulheres, crianças e idosos indefesos, destruam comunidades ou expul­sem famílias de seus lares ancestrais a menos que eles possam alegar es­tar apenas cumprindo ordens. Parece que haveria somente duas soluções possíveis para o problema:

1. Deixar a República continuar como governo de fato, controlado por socialistas, deixar que imponham o controle do governo nas áreas de maioria de direita, enquanto obtêm algum tipo de acordo com eles para que deixem as cidades, vilas e aldeias de maioria anarquista em paz para se organizarem como desejam… e espero que o governo mantenha o acordo.

2. Declarar que todos deveriam formar suas próprias assembleias populares locais e permitir-lhes decidir seu próprio modo de auto-organização.

A segunda parece a mais ajustada aos princípios anarquistas, mas os resultados provavelmente não teriam sido muito diferentes. Afinal, se os habitantes de Bilbao, digamos, tivessem um ardente desejo de criar um governo local, como exatamente alguém os teria impedido? Municípios onde a Igreja ou proprietários de terras ainda tivessem apoio popular presumivelmente colocariam as mesmas velhas autoridades direitistas no poder; municípios socialistas ou comunistas poriam burocratas de seus partidos; estadistas de direita e de esquerda formariam então confederações rivais que, embora eles controlassem apenas uma fração do antigo território espanhol, se declarariam o legítimo governo da Espanha. Os governos estrangeiros reconheceriam uma ou a outra — já que ninguém estaria disposto a trocar embaixadores com um não governo como a FAI, mesmo supondo que esta o desejasse, o que não seria o caso.

Em outras palavras, a guerra armada poderia terminar, mas a luta política continuaria, e grandes partes da Espanha presumivelmente acabariam parecendo-se com a Chiapas contemporânea, com cada distrito ou comunidade dividido em facções anarquista e antianarquista. A vitória final teria de ser um processo longo e árduo. A única maneira de realmente persuadir os enclaves estadistas seria persuadir suas crianças, o que poderia ser alcançado com a criação de uma vida obviamente mais livre, mais prazerosa, mais bonita, segura, relaxada e satisfatória nos setores sem Estado. Os poderes capitalistas estrangeiros, por outro lado, mesmo que não interviessem militarmente, fariam todo o possível para evitar a notória “ameaça do bom exemplo”, por meio de boicotes econômicos e subversão e despejando recursos nas zonas estatizadas. No fim, tudo provavelmente dependeria do grau em que as vitórias anarquistas na Espanha inspirassem insurreições em outros lugares.

A verdadeira razão do exercício imaginativo é apenas mostrar que não existem rupturas totais na História. O outro lado da velha ideia da ruptura total, aquele momento em que o Estado cai e o capitalismo é derrotado, é que nada além disso representa uma vitória real. Se o capitalismo permanecer de pé, se começar a mercantilizar nossas ideias outrora subversivas, é a prova de que eles venceram. Nós perdemos, nós fomos cooptados. Para mim isso é absurdo. Podemos dizer que o feminismo perdeu, que não conquistou nada, só porque a cultura corporativa se sentiu obrigada a demonstrar apoio à condenação do sexismo e firmas capitalistas começaram a comercializar livros, filmes e outros produtos feministas? É claro que não: a menos que tenhamos conseguido destruir o o capitalismo e o patriarcado com um golpe mortal, esse é um dos mais claros sinais de que chegamos a algum. É de se presumir que qualquer estrada efetiva para a revolução envolverá infinitos momentos de cooptação, infinitas campanhas vitoriosas, infinitos pequenos momentos de insurreição ou momentos de autonomia fugaz e encoberta. Hesito mesmo em especular como realmente seria. No entanto, para começarmos a caminhar nessa direção, a primeira coisa que precisamos fazer é reconhecer que, de fato, vencemos algumas.

Na verdade, ultimamente, temos vencido um bocado. A questão é como romper o ciclo de exaltação e desespero e gerar algumas visões estratégicas (quanto mais, melhor)dessas vitórias construídas uma sobre a outra, para criar um movimento cumulativo rumo a uma nova sociedade.

From 2001 to today—the struggle continues.