Anarquistas Russos Sobre o Motim do Grupo Wagner

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Declarações de Três Organizações Anarquistas

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Na manhã do dia 24 de junho, Vladimir Putin fez um pronunciamento à Rússia sobre a rebelião em andamento da companhia militar privada Wagner, dizendo que a rebelião de Yevgeny Prigozhin está “empurrando o país para a anarquia e o fratricídio”.

Isso é um péssimo uso das palavras. O fratricídio tem sido a regra sob Putin. Torturar e assassinar dissidentes é fratricídio. Invadir a Ucrânia foi fratricídio. Tanto a empresa Wagner quanto os militares russos fizeram do fratricídio sua profissão. Anarquia é o oposto do fratricídio: é a condição que prevalece quando as pessoas não competem para governar umas às outras. O totalitarismo sempre leva a conflitos sangrentos pelo poder.

Olhando para a situação na Rússia, não podemos deixar de pensar na guerra civil que eclodiu no [Sudão]https://pt.crimethinc.com/2022/01/07/sudao-anarquistas-contra-a-ditadura-militar-uma-entrevista-com-uniao-anarquista-sudanesa) entre o exército e as Forças de Apoio Rápido no início deste ano. Procurando suprimir poderosos movimentos sociais de libertação, o governo equipou os mercenários das Forças de Apoio Rápido, apenas para acabar lutando com eles pelo controle do país.

Esse tipo de violência generalizada é o resultado final inevitável dos processos de militarização. Como governos e corporações confiam cada vez mais na força bruta para suprimir a agitação social, canalizando cada vez mais recursos para a polícia e segurança privada, eles estão criando as condições para horríveis guerras civis em escala cada vez maior. A guerra civil que prevalece no Sudão e que se agiganta na Rússia hoje pode muito bem irromper em outro lugar amanhã, se não conseguirmos mudar o curso de nossa sociedade em escala global.1

Aqui, traduzimos apressadamente três declarações de grupos anarquistas russos. Todos eles, necessariamente, são grupos clandestinos. A primeira está sediada na Sibéria; a segunda é a Organização de Combate Anarco-Comunista, que entrevistamos no ano passado; e o terceiro é o coletivo editorial da Avtonom, indiscutivelmente a plataforma de publicação anarquista sobrevivente mais significativa da Rússia.

Desde que as seguintes declarações apareceram, Prigozhin declarou que suas forças que estavam com destino a Moscou voltaram atrás, após negociações com o governante da Bielo-Rússia, Aleksandr Lukashenko. Prigozhin pode ter dado um passo maior que a perna, mas Putin também fez o mesmo na Ucrânia — ou então ele não precisaria de Prigozhin e seu grupo Wagner para começo de conversa.

Resta saber como essa crise se desenrolará na Rússia a longo prazo. Na Turquia, a tentativa fracassada de golpe de 2016 permitiu ao presidente Recep Tayyip Erdoğan consolidar o poder, mas qualquer sinal de fraqueza e desunião só pode colocar Putin em perigo. A situação volátil e imprevisível que nossos camaradas prevêem na Rússia provavelmente ainda está por vir. Será melhor se as forças em conflito não forem dois déspotas totalitários rivais, ou pelo menos não apenas eles.


Movimento dos Anarquistas de Irkutsk

Publicado em russo aqui.

Na situação atual em torno do motim de Wagner, não há outro lado que possamos escolher a não ser nós mesmos.

O mesmo pode ser dito para grande parte da população – nem o regime de Putin nem aqueles que competem com ele pela autoridade agirão no interesse de todos os povos da Rússia.

No momento, podemos nos preparar para uma variedade de resultados possíveis. Não se pode descartar que as autodefesas populares, cuja principal função num cenário de guerra civil no país seja a organização da segurança das populações, bem como a articulação logística para o abastecimento alimentar e de primeira necessidade. Ninguém deve ficar completamente indefeso contra as formações militares mercenárias e o exército russo, e uma das principais armas à disposição de todos nós é a solidariedade e o apoio mútuo.

Ao mesmo tempo, devemos pensar no que fazer se a atual autoridade do estado entrar em colapso na cidade de Irkutsk ou em toda a região de Irkutsk.

Defendemos a organização de conselhos, assembléias e fóruns populares abertos sobre todas as questões mais importantes da vida pública, incluindo economia, abastecimento, conservação da natureza, direitos humanos, autodefesa, educação e serviços municipais. Em todas essas estruturas, gostaríamos de ver comitês independentes de mulheres e povos indígenas.2

Enquanto isso, estamos observando o desenrolar da situação. Putin já está falando na televisão, dizendo que teme a destruição do sistema estatal e o início da “anarquia”! Como anarquistas, podemos dizer que o ditador teme a anarquia com razão: afinal, isso implica que seu poder e a ideia de “mundo russo” deixarão de existir e que, em vez disso, a sociedade começará a funcionar de acordo com os princípios autogoverno, descentralização e federalismo.

Acreditamos que a anarquia ainda está muito distante neste país. Mas não somos impotentes na situação atual; podemos nos preparar para qualquer coisa que possa acontecer e ficar atentos para ver se haverá um momento favorável a todos aqueles que aqui anseiam por liberdade, cansados ​​do regime de Putin. Gostaríamos que todos os que consideram isso pensassem sobre o que fariam nesse caso e se unissem a outras pessoas em quem se pode confiar.

Esta é a coisa menos e mais básica que pode ser feita agora.


Organização de Combate Anarco-Comunista

Publicado em russo aqui.

De fato, entramos em uma nova fase dessa virada na história. Há muito tempo ficou claro que aqueles no topo da estrutura de poder começariam a se corromper em breve; era apenas uma questão de tempo.

Agora, a principal tarefa dos movimentos anarquistas e de libertação, tanto na Rússia quanto no exterior, é consolidar as forças disponíveis, adquirir o que é necessário, analisar o momento, estabelecer canais de comunicação que se desfizeram e estar prontos para agir.

Não nos iludimos: o início deste momento pode demorar algum tempo. Da revolução de fevereiro (durante a qual os generais participaram da remoção do czar) até a revolução de outubro, nove meses se passaram. Da rebelião de Kornilov a outubro, dois meses.

Mas uma coisa é clara. Primeiro, o momento do confronto armado direto está mais próximo do que nunca. Em segundo lugar, nem o regime de Putin nem Prigozhinsky são nossos amigos. Nesta luta entre dois canibais, anarquistas devem ficar longe — deixe-os sangrar o máximo possível. Dessa forma, eles não poderão perturbar as pessoas no futuro.

Mas esse período de espera pelo momento certo deve ser gasto em nosso benefício. E o tempo todo, a cada momento – para se preparar e aumentar sua disposição para agir – mas também para analisar a situação a cada momento, para estar pronto para começar a agir, deixando tudo para trás, mesmo que a disposição seja insuficiente. Porque ainda pior do que começar cedo, antecipando-se ao momento, é dormir demais no momento em que você poderia virar a história na direção correta.

Além disso, gostaríamos de dizer algo sobre o tema dos chamados para atacar os escritórios de registro e alistamento militar e outros prédios do governo agora.

Discordamos veementemente deste chamado. Nesse momento, o inimigo está se preparando para repelir um ataque — não de guerrilheiros, mas de amotinados com armas. Atacar tais objetos agora significa desperdiçar seus recursos, praticamente atacando as fortalezas fortificadas do inimigo com as próprias mãos.

A guerrilha deve atacar onde o império é vulnerável, não onde está a armadura. Ataque onde o inimigo não está esperando. Portanto, agora é possível atacar objetos distantes das cidades. O inimigo reuniu forças para se defender? Isso significa que ele expôs as fronteiras distantes e as estradas de acesso. Ataque gasodutos e oleodutos, ataque trilhos de trem que levam a instalações militares (mas longe deles), ataque linhas de energia e canos de água que alimentam a polícia e bases militares. Mas não os próprios objetos, onde o inimigo está esperando.

Ou, se o risco for muito grande, gaste esse tempo se preparando para um levante armado.

Um guerrilheiro animado e pronto para o combate que pode participar de confrontos futuros é agora cem vezes mais importante do que um guerrilheiro que jogou uma munição improvisada em um policial e foi morto a tiros por um policial sob estresse.

E não se esqueça do regime de [Operação Anti-Terrorista]((https://meduza.io/news/2023/06/24/v-moskve-i-moskovskoy-oblasti-vveden-rezhim-kontrterroristicheskoy-operatsii).3 Mesmo que você decida não atacar um policial, mas uma linha de energia a 5 quilômetros de distância, os riscos de ser pego no caminho sob o CTO aumentam muitas vezes. Avalie com sensatez e não corra riscos desnecessários.


Avtonom / Ação Autônoma

Esta declaração apareceu originalmente em russo aqui.

Agora, enquanto esta declaração está sendo publicada, ainda não podemos prever totalmente o desenvolvimento dos eventos em torno da “rebelião de Wagner” em uma visão relativamente de longo prazo. Mas podemos esperar definitivamente duas tendências aparentemente opostas: primeiro, o aumento da repressão contra os cidadãos comuns, não apenas pelas forças de segurança do Estado, e segundo, simultaneamente, um aumento do caos, quando os lados opostos deixam as pessoas enfrentando os problemas que eles próprios criaram.

Claro, Prigozhin não é melhor que Putin: agora alguns fascistas estão lutando contra outros. Qualquer poder autoritário acaba gerando conflitos sangrentos.

Em tal situação, a demanda por auto-organização, a criação e o fortalecimento de laços sociais de base e a ajuda mútua se espalharão. As pessoas criarão novas iniciativas, novos movimentos. A tarefa dos anarquistas é fazer todos os esforços para ajudar a criar e participar de estruturas de base, criando novas associações e fortalecendo a interação entre as existentes.

escrevemos que não existe “nosso lado” no embate entre os “Wagneristas” e as estruturas estatais “oficiais”. Na disputa em andamento, todos eles buscam apenas seus próprios interesses e apenas se defendem. É melhor que todas as outras pessoas não se arrisquem na luta alheia e, se possível, fiquem longe dos pontos de colisão.

Mas se quisermos criar uma alternativa para esses dois monstros, devemos aprender a nos unir para resolver nossos problemas, apoiar a luta para acabar com a guerra e a repressão, nos defender da violência e defender nossos interesses e direitos. Só assim poderemos participar da construção de uma nova sociedade para substituir o regime falido e as gangues de bandidos que ele formou.

Nos solidarizamos com nossos camaradas de Irkutsk que escreveram:

Putin já está falando na televisão, dizendo que teme a destruição do sistema estatal e o início da “anarquia”! Como anarquistas, podemos dizer que o ditador teme a anarquia com razão: afinal, isso implica que seu poder e a ideia de “mundo russo” deixarão de existir e que, em vez disso, a sociedade começará a funcionar de acordo com os princípios autogoverno, descentralização e federalismo.

Onde o controle do estado sobre a sociedade e a repressão enfraquecer, anarquistas devem usar as oportunidades que se abrem para espalhar as ideias anarquistas tanto em palavras quanto em atos. Agora, notícias de levantes nas colônias prisionais e nos centros de detenção provisória estão chegando. Precisamos pressionar pela libertação de presos políticos e outras vítimas do poder arbitrário.

Não importa como vai terminar a rebelião que está se desenrolando agora, uma nova vida deve nascer de baixo, das demandas dos amplos setores da sociedade. Para tornar isso possível, todos nós precisamos de estruturas de autogoverno e auto-organização. Unam-se!

  1. Em retrospecto, os eventos de 6 de janeiro de 2021 em Washington, DC podem nos dar a menor amostra de como pode ser um conflito que opõe policiais e soldados de extrema-direita contra o governo dos Estados Unidos. 

  2. A região conhecida como Irkutsk está localizada no sudeste da Sibéria e abriga vários povos indígenas; a história da colonização da Sibéria é aproximadamente paralela à linha do tempo e aos eventos da colonização das chamadas Américas. 

  3. Na região de Moscou e na região de Voronezh, o governo introduziu um regime de Operação Anti-Terrorista em 24 de junho em resposta ao motim de Yevgeny Prigozhin e da empresa Wagner.